Na minha rua estão cortando árvores
Botando trilhos
Construindo casas.
Minha rua acordou mudada.
Os vizinhos não se conformam.
Eles não sabem que a vida
tem dessas exigências brutas.
Só minha filha goza o espetáculo
e se diverte com os andaimes,
a luz da solda autógena
e o cimento escorrendo nas formas
(Carlos Drummond de Andrade)
O poema de Drummond fala das mudanças da cidade. E enquanto a gente lê, é possível perceber o som do processo de transformação: eStão, árvoreS, trilhoS, conStruindo, casaS, oS vizinhoS, Se, eleS, Sabem, deSSaS, exigênCiaS, brutaS, Só, eSpetáculo, Se, oS andaimeS, luZ, Solda, Cimento, eScorrendo naS formaS; e Rua, coRtando, áRvoRes, tRilhos, constRuindo, Rua, acoRdou, confoRmam, bRutas, diveRte, escoRRendo, foRmas.
Tais letrinhas repetidas soam como os barulhos (trilhas sonoras) da mudança que afeta a rua, que tira os moradores de sua zona silenciosa do conforto de dias iguais, com também iguais cenários e rotinas: um infindável “brrr” e “ssss” da construção, do cortar de árvores, da colocação de trilhos, do escorrer do cimento e construir casas.
E se assim “ouvimos” a mudança, da mesma maneira o poema descreve, de forma a nos fazer visualizar, as alterações urbanas: a natureza sendo subtraída e elementos acinzentados sendo acrescentados para que o novo se instale.
“Minha rua acordou mudada. Os vizinhos não se conformam”.
Mas o autor, resiliente aceita a inevitabilidade da transformação e da brutalidade com que estas nos atravessam. “A vida
tem dessas exigências brutas”.
Drummond sabe das coisas. Com maestria, num poema curto, mostrou que há dois momentos da mudança: a destruição do que é, e a construção do que será.
No poema, os andaimes denotam as estruturas que se elevam do chão, a solda autógena demonstra a velocidade dos avanços científicos, o cimento escorrendo nas formas faz referência ao movimento e o “não parar” dessas construções, montagens e inovações da urbanidade. A modificação do cenário e de toda vida que o habita.
Se por um lado, os vizinhos apresentam um ar conservador diante das modificações pelas quais a rua passa; por outro, a filha observa e aprova o que se instala, sem medo do novo. Sob o olhar infantil da menina, que ainda não se acostumou com o que há e aprecia o aprendizado e o crescimento, a mudança ganha cara de espetáculo.
Será possível metaforizar que a vida tantas vezes nos apresenta mudanças do mesmo modo que a chegada da urbanidade nos anos 30? Não é assim que as mutações nos chegam? Barulhentas e brutas? Nos tirando do que é cômodo e conhecido para nos jogar direto dentro de um novo cenário? E se for, será que dá pra gozar o espetáculo sem receios e com disposição para as novas possibilidades, nos divertindo um pouco enquanto a turbulência passa?