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Primeira Audição

Tenho um hábito que devo realizar em torno de duas a três vezes por ano, é algo especial, se eu fizer todos os dias seria vulgarização. Quando aqueles conjuntos musicais que me enobrecem a alma lançam músicas novas, gosto de separá-las e ouvi-las sem fazer nada mais além do que observar o mundo tendo-as como trilha sonora.
Gosto bastante do cenário do céu para ilustrar esse movimento que chamo de “Primeira audição”. Recordo-me de realizar este hábito no apartamento 41 do bloco 4, em que morei entre os anos de 2009 e 11, em Marília/SP. Sentava-me em um poltrona (resgatada do lixo) de frente para a janela da sala e, com as pernas esticadas, observava o azul límpido do céu do oeste paulista.

Aquele aroma de cidade não tão poluída, o vento rasgante que batia no quarto andar e o cenário híbrido urbano rural. Como gostava de me apoiar na janela, fones nos ouvidos e tomar um cigarro e fumar um café observando puramente as construções no horizonte, o pasto e os pés de manga no terreno ao lado.
Mas no hábito descrito, que me perdoe o pasto vizinho ao prédio, o lance era mesmo com o céu. Tanto que, sem nem perceber, era o céu que eu buscava quando retornei a morar em São Paulo, em 2014. No apartamento da mãe era impossível encontrá-lo límpido ou sem as linhas imperfeitamente erguidas da urbanização desordenada, já na casa do pai rolava um pedaço de céu.

Rede ou cadeira de praia no quintal, e dava para ver o céu recortado pelo topo de um altíssimo muro, as telhas do quintal e as beiras dos telhados de três casas, ah, e as vezes passavam aviões e helicópteros de pequeno porte – não à toa nesta época meu lema diário, aquela frase que dizia todos os dias umas dez vezes de frente pro espelho, era “Saudades do interior”, confesso que, agora morando no centro de Mogi das Cruzes, ainda as sinto um pouquinho.

A internet me informou que há música nova d’“A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante”. Vejo que tem um sol lá fora e reafirmo para mim mesmo que aqui dentro está mais frio do que o meu conforto corporal requereria. O inverno chegará em alguns dias.

Moro atualmente em uma casa de fundos. Aliás, fundos e topo, haja vista que é suspensa por pilastras de tijolo por cima de um espaço vazio. Parece uma mescla de casa da árvore com construção bizarra, feita para aproveitar trinta metros quadrados de terreno e encontrar um professor desesperado por um imóvel requenguela com um aluguel barato que caiba em seu salário. E é bem isso mesmo.

Há um protótipo de jardim a frente da casa, é um espaço bem amplo, coisa de um metro por dois. Talvez até um pouco mais. Os meus varais cruzam todo o espaço, mas ali é o único espaço da casa que dá para confortavelmente assistir o céu. Deixo ali, para os momentos de ouvir música assistindo o céu, um banquinho desses de levar para a praia. É só pular o corrimão da escada que dá acesso à casa em si, e dar outro pulo, que estou nele.

É bem verdade que o horizonte à minha frente é recortado por construções mais do que deveria ao meu gosto, mas ainda assim é confortável. Aliás, peculiarmente confortável. Há algum mato até, um par de coqueiros, mas metade da vista se perde com a estrutura da própria casa em que moro. Muros, paredes, telhados, caixa d’água.
Mais a frente um morro com árvores e casas e um único prédio. Solitário. Pelo visto novo e pouco habitado, quando me mudei havia ainda uma faixa daquelas que anunciam apartamentos, e quando noite é comum que poucos dos retângulos que sei serem janelas e varandas estão iluminados.

Há conforto pela vista e foi por agora ouvindo a bela nova música do E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante, “Daiane”, que me dei conta de como a confusão habitará minhas memórias e lembranças futuras.
No horizonte mariliense do Apartamento 41, também havia um único prédio, uma única espiga, espinha, coluna dorsal a riscar com violência em uma barra vertical o azul do céu. Objeto malquisto, obstáculo às nuvens que passeiam e são interrompidas, intervaladas por um sem número de janelinhas de banheiros e áreas de serviço.
Recordei-me do acordar do coma causado após a primeira audição de “Ashes”, do Yann Tiersen, e me levantei até um pouco zonzo. Me apoiei na janela e vi lá longe, recortando o ar primaveril do céu, aquele prédio, era Outubro de 2010.

Maio de 2018 e outro coma, dessa vez com os meninos d’A Terra. Abro os olhos e estou no meio das roupas, que já completam três dias penduradas nos varais. Estou em meio a cordas de nylon, tecidos, pregadores plásticos. Vejo lá no fundo, quebrando a sequência da luz, um único prédio, espigão sombreado, roubando a força do sol.
Tenho certeza que com sessenta anos – que será praticamente o dobro da idade que tenho hoje – não me recordarei com exatidão sobre qual música foi, em qual cidade, com qual céu, com qual vento, com qual fone, com qual aparelho eletrônico, com qual pensamento, com qual caneca de café, com qual marca de cigarro.

É por essa razão, neste hábito tão frequente nos últimos quase cerca de dez anos, que há um segundo momento: precisamente, o da segunda audição da música. Nele, me sento de frente para um computador ou com um caderno e caneta em mãos, e ouço repetidamente a música, enquanto talho linhas sobre o que ela me fez sentir naquele momento anterior, de primeira audição.

A música traz à superfície uma série de sentimentos, pesco um deles e o acaricio, sem tirar da água, sem machucar com azul. O pesco com uma tarrafa de sensibilidades.

“Daiane” foi uma máquina de viagem no tempo, uma construção musical que bateu nos tímpanos e refletiu na mente como o puro sabor de uma música maravilhosa, que me proporcionou uma infusão em minha própria humanidade: sem sair do meu minúsculo quintal, assistindo o céu, transitei por entre anos, lugares, pessoas…
A primeira audição de uma música é algo muito importante. Ouça “Daiane” com carinho, entregue-se a ela!

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